Pedro Santana Lopes: "Já estamos a trabalhar para receber os refugiados. Temos de dar o exemplo"

No encerramento da grande exposição Da Alma de Portugal, comemorativa dos 150 anos do DN e com o apoio exclusivo dos Jogos Santa Casa, o provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa fala sobre a ajuda que se prepara para os refugiados e aquela que se dá diariamente a crianças, jovens, idosos e sem-abrigo.
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Soube-se hoje [ontem] que o número de refugiados que Portugal poderá receber é maior do que aquilo que estava previsto. A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, de que é provedor, manifestara a sua intenção de receber uma parte substancial. Como se enquadra essa política e essa generosidade no meio de tantos afazeres que tem em mãos?

Manifestei essa abertura, falando na região de Lisboa, quando o número avançado era de cerca de 700. Como sabe, já vamos nos dois mil e qualquer coisa. Há uma questão de princípio. Primeiro, a questão das responsabilidades. Por acordo entre a Santa Casa e o governo, de facto a Santa Casa, hoje em dia, tem essa responsabilidade mais do que qualquer entidade aqui nesta região de Lisboa, que é para onde se dirige a generalidade dos refugiados. Para a grande maioria, é a Santa Casa a entidade que os deve acolher. Já acolhe há muitos anos, mas sempre com responsabilidades repartidas. Agora, a responsabilidade é praticamente exclusiva. Esta questão dos refugiados envolve muitas vezes aspetos complexos. Este tipo de refugiados, que alguns intelectuais políticos teimam, no bom sentido, em querer classificar como refugiados políticos...

São mais refugiados económicos.

São refugiados económicos, sociais. Exigem - temos assistido a este drama compungente - uma resposta que não seja habitada pelos instintos egoísticos da parte de todos os que têm responsabilidades no continente europeu e, nomeadamente, na União Europeia. E, nessa perspetiva, tem-me chocado um pouco algum tipo de atitudes que tenho visto. O Reino Unido disse logo que não queria receber mais. Outros países também torceram o nariz. Julgo que Portugal tem essa tradição, faz parte da identidade enquanto povo essa capacidade de acolher. E, dentro de Portugal, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa - instituições como as misericórdias - tem uma obrigação acrescida. E já estamos a trabalhar nesse sentido...

A trabalhar de que forma?

Para já, gostava de lembrar que a União Europeia anunciou um apoio financeiro significativo para este processo de acolhimento de refugiados.

Cada refugiado terá cerca de seis mil euros.

Exatamente. Nós estamos a identificar os espaços onde os podemos receber, os recursos humanos que temos disponíveis e aqueles que temos necessidade de recrutar para as diferentes áreas, fazer o estudo repartido por camadas geracionais, por famílias, para casos em que as pessoas chegam sozinhas, sem o respetivo agregado familiar, identificar a capacidade que temos disponível em Lisboa, fora de Lisboa, em colaboração com a rede também da união das misericórdias e com autarquias. Neste momento, estamos a preparar-nos para estarmos prontos quando nos disserem que eles vão começar a chegar.

É um trabalho que não se esgota num curto período de tempo.

Vai durar anos. A questão da coordenação, da sua integração social, processo educativo para os mais jovens, preparar o estudo das hipóteses de equivalência ou de regimes excecionais. A Santa Casa tem algum know-how na matéria, mas este caso é absolutamente excecional e liga-se com pessoas que também não são de língua portuguesa. Esse é também um aspeto que tem de ser cuidado.

É também preciso perceber quais são as suas expectativas.

Estou convencido de que serão muito baixas neste momento, querem é que uns braços as recebam.

Grande parte deseja ir para o Norte da Europa. Portugal, do ponto de vista económico, não terá a mesma capacidade.

Sim. Mas não comparando de todo, estou convencido de que, tal como acontece com esta falange imensa de turistas que cada vez mais nos visita, quando conhecerem Portugal vão-se esquecer do Norte da Europa rapidamente. E estamos a preparar-nos para os receber como deve ser. Acho que temos de dar este exemplo. Aliás, acho que toda a gente devia dizer o mesmo, passe a presunção. Acho que fica muito mal haver uma só voz na União Europeia que diga: "Eu não quero." Um continente que andou por todo o mundo, à descoberta de novos povos, agora perante este drama ouvir sequer uma voz que diga "não quero", acho que não fica bem. Cá do canto da Europa temos de dizer "nós estamos prontos e de coração aberto". Acho que é preciso.

Disse há pouco que a capacidade que a Santa Casa tem para receber também decorre das experiências anteriores que tiveram. Mas, no dia-a-dia, não é esse o trabalho que mais fazem. Trabalham muito nesta zona de Lisboa com idosos, com uma população de sem-abrigo que aumentou muito nesta altura da crise.

Também com crianças. Tenho 500 filhos na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Fora da Santa Casa tenho cinco, na Santa Casa são 500. Também com jovens, muito com os sem-abrigo. E trabalhamos muito com pessoas de idade. Temos uma tarefa para décadas, que é mudar aquilo que nós chamamos o paradigma do envelhecimento. É acabar com aquilo que todos nós sabemos, conhecemos e rejeitamos e quando vemos dizemos assim: "Quando chegar àquela idade eu não quero." Lembro-me sempre do que a minha mãe dizia: "Não me ponham num lar, levem-me para os Inválidos do Comércio." Falemos sobre o Norte da Europa. No Norte da Europa há mais exercício, as pessoas são mais como uma linha, não têm tantas artroses, não têm tanta gordura. Porque têm alimentação mais regrada, porque fazem mais exercício desde cedo. Em Portugal há muito isto: as pessoas chegam a uma certa idade e já não se conseguem mexer, as famílias têm dificuldade em tomar conta delas e são postas num lar ou centro de dia. Esses modelos têm de ser postos em causa, já estão a ser cada vez mais. A Santa Casa cada vez mais os põe em causa e trabalha numa perspetiva de intergeracionalidade. Tudo o que fazemos é juntando gerações.

Mais novos com os mais velhos?

Sim. E às vezes universitários, agregados familiares de cerca de 40 anos e pessoas já aposentadas, como estamos agora a desenvolver na Ameixoeira.

O que é que fazem em concreto?

Imagine: uma casa para pessoas aposentadas, um espaço, tem de ter sempre apartamentos para universitários ou às vezes para agregados familiares a meio do percurso normal de vida. Depois temos um espaço comum, em refeições, em leisure (distração, entretenimento), onde as pessoas podem estar juntas a tomar o pequeno-almoço, à hora de jantar. E depois, ao mesmo tempo, estamos a desenvolver metodologias, programas de trabalho que levem, imagine, os mais novos, logo de manhã, a puxarem pelos mais idosos e irem fazer exercício físico. À noite, a capacidade também dos mais idosos de se "vingarem", a contar um episódio das suas vidas que lhes possa servir de lição. Estamos a fazer isso já com pessoas que estão nas suas casas.

Qual é a dimensão desses programas? Estamos a falar de experiências-piloto que estão a crescer ou de uma política mais consistente?

São experiências-piloto. Não podemos construir os novos espaços todos de uma vez. Há um lar que temos no Palácio dos Marqueses de Minas, no Bairro Alto, que vai mudar para outro espaço da Santa Casa. O novo espaço, que já existe - este não é construído de novo -, já vai ser habitado nessa lógica. Tudo o que fazemos hoje em dia, quer seja construção nova quer seja nos espaços que já temos, é obrigatório ser nessa lógica de comunhão intergeracional. Têm de acabar estes estigmas: "Ali é a casa dos velhos, ali é a casa dos mais novos."

E o trabalho que tem sido feito com os sem-abrigo de Lisboa: como é que correu e o que é que puderam concluir desse esforço que foi feito? É para continuar?

Infelizmente, continuará a existir sempre. Se formos para terreno meramente estatístico, do ano passado para este, de há dois anos para agora, diminuiu o número de sem--abrigo que encontramos nas ruas de Lisboa...

Tem algum número?

Sim, não chegou a cem, num universo de 700, 600 e tal, depende dos que estão em estabelecimentos, dos que estão na rua. Diminuiu em cerca de 10%. Mas não atribuímos isso à recuperação económica. Há uma razão que é óbvia: a maior parte saiu da Baixa. Porquê? Por causa dos turistas. É impressionante. Foram para outras zonas da cidade, imagine, Benfica, Amoreiras. Não querem a agitação dos turistas. Isto vai continuar. Nós melhorámos muito e estamos a melhorar, com a câmara.

Essa relação tem vindo a intensificar-se. Foi presidente da Câmara Municipal de Lisboa...

O Dr. António Costa [ex-presidente da autarquia] tem dito muitas vezes que todos os provedores da Santa Casa deviam ter sido presidentes da câmara. As instituições andam muitas vezes à luta, o que é uma coisa completamente estúpida.

Uma luta por quê?

Por espaço de comando: "Aqui agora é como eu digo." Isso acabou. Entre a câmara e a Santa Casa há imensa colaboração. Deixe-me só contar-lhe uma coisa, a propósito dos sem-abrigo e se algum dia acabarão. No Beato, há uma coisa chamada mitra, de que todos já ouvimos falar. Um pouco antes do meu mandato [como provedor], a mitra e outros equipamentos passaram para a Santa Casa. É impressionante como as sociedades vivem sem saberem o que têm no meio. Nenhum de nós faz ideia daquilo que estava lá. Dezenas de pessoas - ainda estão algumas - que não vinham fora daqueles portões, algumas há décadas. Aquilo era ainda um pouco ao abrigo do estatuto da mendicidade, do anterior regime. E ficava no meio de Lisboa, ao lado da residência [oficial] do presidente da câmara. A maior parte das pessoas todas desdentadas...

Isso é um cenário dantesco.

A coisa mais impressionante que eu vi na minha vida. Saí de lá, naquela sexta-feira, absolutamente em baixo. Nós vivemos o dia-a-dia, eles estavam lá e ninguém sabe. Isto a propósito da hipótese de os sem-abrigo algum dia acabarem. Não há, até porque há pessoas que fazem aquela opção. E nós temos de respeitar.

Em quase quatro anos como provedor, ficou surpreendido com a vulnerabilidade das pessoas?

Muito. É preciso ter alguma resistência psicológica para fazer o dia- -a-dia numa instituição como esta, no meio de uma crise como aquela que temos vivido.

Há muitos pedidos, muito desespero?

Muitos, sim, de manhã à noite. Se abrir o meu telemóvel agora, tenho de certeza vários e-mails. É o dia todo - eu e os meus colegas de trabalho - a receber mensagens.

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